O lugar da ética e da auto-regulação na identidade profissional dos jornalistas
O objectivo central da nossa investigação é tentar compreender as características específicas da profissão de jornalista, seja nos modos como ela é encarada “de dentro” pelos seus directos protagonistas, seja nos modos como ela é olhada e julgada “de fora”, pelo todo social com que interage. Trata-se de uma profissão reconhecida como tal e ‘institucionalizada’ há escassas décadas, e mesmo assim de modos algo vagos em certos países. O pressuposto de que partimos é o de que esta profissão foi sendo o que quis ou pôde ser, mas também o resultado de tensões, equilíbrios e negociações com os diversos actores sociais com que ela, de diferentes modos em diferentes tempos e espaços, se inter-relacionou. Um segundo objectivo, complementar deste, é compreender qual o papel particular das questões éticas e deontológicas na definição de uma identidade profissional dos jornalistas, bem como os modos em que ela se pode concretizar. Passamos em revista as mais recentes correntes teóricas ligadas à sociologia das profissões, decorrentes dos paradigmas funcionalista, interaccionista e “do poder”. Seguindo a sugestão interaccionista, focamos a nossa atenção mais no processo do que no resultado da estratégia de profissionalização dos jornalistas – o seu “projecto profissional” –, conduzidas ao longo de anos. Discutimos ainda as controvérsias em torno do conceito de profissionalismo, entendido ora como uma negativa ideologia de controlo (traduzida na apropriação, em regime de monopólio e com o aval do Estado, de um segmento fechado do mercado de trabalho e na valorização social do grupo), ora como um positivo sistema de valores que reclama orientar-se para um serviço desinteressado à comunidade. Depois de percorrida(s) a(s) história(s) recente(s) de construção da profissão em diferentes países, olhamos mais em detalhe como os jornalistas lidaram com certos ‘traços’ tradicionalmente associados aos grupos profissionais, nos domínios cognitivo, valorativo e normativo. Especificamente, analisamos as questões relacionadas com os variados perfis das suas associações profissionais, com o saber e saber-fazer que lhes é próprio, com a sua responsabilidade social e com o imperativo ético que se lhes coloca. No capítulo específico da ética, percorremos as mais importantes teorias (éticas deontológicas, teleológicas, consequencialistas, utilitaristas, “ética das virtudes”, “ética dos afectos”, “ética do discurso”), procurando discernir o que nelas há de semelhante e o que há de diferente. Evocamos também as perspectivas que procuram delimitar uma espécie de “mínimo ético comum”, baseado num pequeno número de proto-normas morais universais, nas quais possa ter as suas raízes não só uma “ética de profissionais”, mas uma mais lata “ética de cidadãos” – que os jornalistas também são. O entendimento de que as responsabilidades éticas, numa profissão com a influência e impacto social do jornalismo, implicam obrigatoriamente a necessidade de prestação de contas à sociedade, leva-nos depois a analisar as modalidades concretas que essa prestação de contas pode e deve assumir. Identificamos as vantagens da auto-regulação dos media e dos seus profissionais (considerando-a o melhor modo de equilibrar liberdade de expressão e de imprensa com responsabilidade), e também os seus limites e fragilidades. Passamos em revista um conjunto de mecanismos e instrumentos de auto-regulação, terminando na figura do Provedor do Leitor, que estudamos mais em detalhe, no contexto de um inquérito de opinião junto de jornalistas de três diários portugueses. Este estudo permite concluir que o balanço desta função (recente em Portugal) é genericamente positivo, embora de modos matizados conforme os jornais específicos e conforme os níveis etários dos jornalistas. Tendo presentes as novas condições em que se exerce o jornalismo na era digital, bem como os novos desafios que se colocam ao “campo jornalístico”, adiantamos a hipótese de que as exigências éticas – contendo obrigatoriamente um exercício competente do ofício – serão cada vez mais centrais na definição de uma identidade profissional específica dos jornalistas. Se alguns dos seus saberes ‘técnicos’ são hoje menos necessários do que no passado (porque outros actores, individuais e colectivos, também produzem e difundem informação no espaço público) ou estão mais acessíveis a qualquer um fora das organizações mediáticas tradicionais, tanto mais importa que os jornalistas aprofundem as marcas diferenciadoras do seu ofício, recuperando (e actualizando) os grandes objectivos que desde o início do processo de profissionalização apontaram como específicos da informação jornalística. Ou seja, a selecção, produção e difusão de informação completa e relevante sobre a actualidade, elaborada segundo critérios de verdade, rigor e interesse público, trabalhada de modo responsável, transparente e accountable, e permanentemente aberta tanto à crítica como à auto-crítica, devolvendo aos cidadãos o seu papel de co-protagonistas da comunicação mediática. Esse é, cremos, o caminho necessário para recuperarem toda a confiança do público, com o que tal implica de reconhecimento – e legitimação social – da sua profissão em construção.